Depois de dois pilotos adormecerem durante um voo comercial, volta a discussão sobre o problema do cansaço no ar — um desafio com o qual instituições militares têm de lidar há décadas. A fadiga dos pilotos é um problema comum nas operações militares.
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As curiosas pastilhas estavam no bolso de um piloto nazista.
Ele foi abatido nos céus do Reino Unido durante um bombardeio na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com ele, estava o seu estoque de metanfetamina.
Na época, esta substância era a preferida da Luftwaffe (a força aérea da Alemanha nazista) para combater a fadiga dos aviadores. Era chamada de “sal dos pilotos”, porque seu consumo era liberado.
Os Aliados suspeitavam do seu uso, mas não tinham certeza – até então.
Aqueles souvenirs farmacológicos foram rapidamente enviados para testes e, logo depois, os britânicos já desenvolviam sua própria versão. O resultado foi um estimulante amplamente distribuído, que possibilitou centenas de missões noturnas em toda a Europa.
Mas era apenas o começo.
Durante a Guerra do Golfo (1990-1991), uma droga relacionada, a dextroanfetamina, voltou a ganhar popularidade. Ela foi consumida pela maioria dos pilotos combatentes que conduziram os bombardeios iniciais sobre as forças iraquianas no Kuwait.
Atualmente, os oficiais da aeronáutica americana ainda consomem a pílula para resolver o mesmo problema: a fadiga dos pilotos, que pode afetar os aviadores em missões longas e comprometer sua segurança.
Mas existe um porém. As anfetaminas podem ser altamente viciantes – e houve grandes abusos já nos anos 1940. Por isso, nos últimos anos, as organizações militares vêm procurando opções para substituí-las.
Uma delas é o modafinil, um estimulante desenvolvido originalmente para o tratamento de narcolepsia e excesso de sonolência diurna nos anos 1970.
Não levou muito tempo para as pessoas descobrirem que, além de ajudar a evitar que as pessoas adormeçam, a droga pode ter outros efeitos poderosos.
Demonstrou-se que a medicação melhora a orientação espacial, o reconhecimento de padrões e a memória de trabalho, além de aumentar o desempenho cognitivo geral, o estado de alerta e a vigilância em situações de fadiga extrema.
O modafinil também tem suas desvantagens. Seus efeitos colaterais podem incluir suor, dores de cabeça latejantes e até alucinações. Mesmo com esses riscos, em certas circunstâncias, a droga pode ser um auxiliar formidável para quem precisa ficar acordado.
Em um estudo inicial, o modafinil manteve pessoas acordadas por até 64 horas de atividade. Seus efeitos foram comparáveis a 20 xícaras de café.
Mas como ele funciona? E qual a razão do seu uso?
Estimulante poderoso
No mundo dos pilotos de combate, existem dois tipos de drogas: pílulas para voar e para não voar.
As primeiras são estimulantes, que aumentam a atividade do sistema nervoso central. Este é um dos motivos por que as anfetaminas, às vezes, são conhecidas pelo nome em inglês speed, que significa “velocidade”.
A outra categoria é a das substâncias sedativas, que reduzem a velocidade de transmissão de mensagens entre o cérebro e o corpo.
Às vezes, em situações em que o tempo de sono e vigília é fundamental, as forças aéreas usam esses medicamentos para fazer o corpo cooperar. Por isso, ao lado de um arsenal de indutores do sono, entra em ação o modafinil.
O modafinil já é amplamente disponível. Ele foi aprovado para uso pelas forças aéreas de Singapura, Índia, França, Holanda e Estados Unidos.
Paralelamente, uma investigação do jornal britânico The Guardian revelou que um estoque substancial da droga foi adquirido pelo Ministério da Defesa do Reino Unido antes do início da Guerra na Afeganistão, em 2001 – e outro pedido ocorreu em 2002, antes da invasão do Iraque.
Embora uma agência de pesquisa de defesa tenha realizado experimentos com as pílulas, não há relatos de que elas tenham sido utilizadas por oficiais de combate.
Durante a Guerra do Golfo (1990-1991), muitos pilotos tomaram anfetamina durante os intensos bombardeios.
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Na última década, aviadores contaram com o apoio de substâncias químicas em centenas de operações militares.
Quando voam pelos céus, os pilotos combatentes costumam ter apenas alguns segundos para observar o cenário e decidir como devem reagir às ameaças. Nestas situações, o cansaço pode facilmente ser fatal.
Mas, por estranho que possa parecer, os pilotos não enfrentam a falta de sono apenas em voos intensos, que incluem manobras difíceis ou operações de guerra.
Na verdade, os voos monótonos também trazem suas próprias dificuldades.
Os pilotos que caíram no sono
Em janeiro de 2023, 153 pessoas, entre passageiros e tripulantes, viajavam em um avião comercial Airbus A320, conduzido por dois pilotos.
Um deles pediu ao copiloto que assumisse o controle do avião para poder dormir um pouco. O colega concordou, mas nada saiu como o planejado.
Um relatório do Comitê Nacional de Segurança no Transporte da Indonésia revelou, em março de 2024, que o voo da ilha de Sulawesi para a capital Jacarta havia ficado sem piloto por 28 minutos, quando os dois adormeceram simultaneamente.
O caso levou a uma investigação nacional e destacou o problema da fadiga dos pilotos em operações comerciais.
“Se você estiver apenas observando, cinco horas parecem demorar muito mais do que em uma missão de combate”, afirma a tenente-coronel Yara Wingelaar-Jagt, chefe do departamento de medicina aeroespacial do Ministério Holandês da Defesa em Soesterberg.
Em situações aceleradas, o corpo produz o seu próprio estimulante, a adrenalina, que aumenta a vigilância e reduz a sensação de fadiga, pelo menos por curto período.
Por outro lado, missões menos estressantes podem levar ao tédio, que pode amplificar o impacto da exaustão.
“Dois anos atrás, depois de completarem uma nova missão, nossos pilotos de teste relataram que o remédio contra a fadiga usado na época, a cafeína, não era suficiente”, conta Wingelaar-Jagt.
“Eles queriam algo a mais para mantê-los acordados durante o voo.”
Para descobrir se o modafinil poderia ser a resposta, Wingelaar-Jagt e seus colegas realizaram um estudo randomizado controlado.
Voluntários da Força Aérea Real Holandesa foram mantidos acordados por 17 horas e receberam uma dose de modafinil, cafeína ou placebo. Em seguida, foi avaliado seu grau de vigília e sonolência.
Os pesquisadores concluíram que tanto a cafeína quanto o modafinil foram eficazes, mas este último funcionou por mais tempo. Mesmo depois de uma noite inteira sem dormir, algumas pessoas que tomaram a droga sentiram que, provavelmente, iriam continuar acordadas por mais um dia, segundo ela.
“Com o modafinil, eles realmente se sentiram menos fatigados e mais alertas”, afirma Wingelaar-Jagt.
Não são apenas os pilotos que podem sofrer os efeitos da falta de sono em contextos militares.
Para realizar certas operações com sucesso, a tripulação pode incluir, particularmente em helicópteros, um atirador de porta, cuja função é apontar armas de fogo e atirar; e um mestre de carga, para fazer subir e descer cargas importantes.
E, em terra, sempre haverá os controladores de tráfego aéreo para ajudar os pilotos a decolar e aterrissar.
Decisão delicada
É claro que existem sérias implicações legais e éticas envolvidas na oferta de estimulantes como modafinil para os oficiais militares.
O que aconteceria se alguém se recusasse a tomar uma droga considerada necessária para o sucesso de uma missão?
A metanfetamina usada pelos pilotos alemães da Luftwaffe durante a Segunda Guerra Mundial, era extremamente similar ao cristal — uma droga ilegal altamente viciante.
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Um estudo sobre as possíveis dificuldades para a permissão de uso de estimulantes nas forças armadas canadenses destacou uma contradição.
De um lado, é ilegal forçar alguém a tomar um remédio no Canadá. Mas, por outro lado, os militares são obrigados legalmente a desempenhar “qualquer função que venha a ser solicitada”, a qualquer hora do dia ou da noite.
Ou seja, se fosse considerado necessário que alguém tomasse modafinil por razões operacionais, essa pessoa poderia se recusar, mas não teria o direito de deixar de cumprir com a missão por conta disso.
E os riscos podem ser altos. Adormecer em um avião pode gerar muitas mortes, incluindo de civis, além da perda de aviões que custam dezenas de milhares de dólares e do fracasso em uma missão importante.
“Para nós [na Força Aérea Real Holandesa], é muito importante não querer forçar alguém a tomar modafinil”, explica Wingelaar-Jagt.
“É uma medida que combate a fadiga, mas não a elimina. Por isso, o mais importante, para combater a fadiga, ainda é enfatizar a escala de turnos, a programação.”
Wingelaar-Jagt explica que é importante questionar se todos os voos noturnos realmente são necessários, embora, às vezes, não se possa evitar.
“Pode ser melhor para um plano de batalha ou pode ser necessário devido a uma ameaça.”
E o modafinil não é uma droga perfeita. Como todos os medicamentos, ele tem efeitos colaterais, que podem ser mentais e físicos.
Diversos estudos concluíram que o modafinil pode fazer as pessoas se tornarem excessivamente confiantes nos seus julgamentos, algo que pode ser fatal para alguém voando a velocidades que podem facilmente atingir os 1.915 km/h.
Os nazistas enfrentavam problemas similares ao medicar sua força aérea durante a Segunda Guerra Mundial.
Eles distribuíram cerca de 35 milhões de pílulas de metanfetamina para seus militares somente na primavera e no verão de 1940. Mas logo se percebeu que os pilotos que tomavam a droga apresentavam falhas de julgamento.
Muitas vezes, eles acreditavam que tinham bom desempenho, mesmo quando, na verdade, ele era muito ruim. Com isso, as autoridades acabaram receando que as drogas, vendidas com o nome comercial Pervitin, pudessem, na verdade, causar acidentes.
E, como as anfetaminas, o modafinil pode causar dependência, embora com muito menos potência. E também é suscetível a abusos.
O medicamento ficou popular como a “droga da inteligência”, nos anos 2000, entre estudantes que tentavam passar a noite em claro estudando e trabalhadores sobrecarregados procurando uma forma de dar conta de tudo.
A anfetamina usada por pilotos militares nas últimas décadas é muito mais suave que a adotada durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, ela também pode causar dependência.
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Proposta muito diferente
Mas o que tudo isso significa para os pilotos comerciais?
É verdade que a duração dos seus turnos costuma ser regulamentada de forma muito mais rígida que a dos pilotos militares. Ainda assim, eles podem passar mil horas por ano entre as nuvens, lutando contra os fusos horários e a fadiga extrema.
Uma pesquisa de 2023 entre 6,9 mil pilotos na Europa concluiu que 72,9% sentiam que não tinham descanso suficiente para se recuperar entre os turnos – e 75% haviam sofrido microssonecas durante o trabalho no mês anterior.
Para Wingelaar-Jagt, os benefícios do modafinil para os pilotos militares podem também se aplicar à aviação comercial, mas isso certamente não deveria acontecer.
“Acredito que, para a aviação comercial, precisamos ser reticentes sobre o que pedimos aos nossos pilotos e à nossa sociedade”, explica ela.
“Nós realmente precisamos que os nossos pilotos comerciais voem à noite para nos levar em viagem ou precisamos aceitar que até os seres humanos têm seus limites e respeitar a necessidade universal de sono?”
Wingelaar-Jagt indica que o modafinil pode ter algum valor para outras profissões com longas horas de trabalho, como o atendimento de emergência ou os bombeiros.
“Para estas linhas de trabalho, sem dúvida, eles precisam atingir o desempenho ideal, mesmo em tempos de fadiga”, segundo ela.
Um estudo concluiu que médicos que haviam ficado acordados a noite toda apresentaram melhor desempenho em uma série de tarefas que podem ser relevantes para suas obrigações depois de tomar modafinil.
Eles foram mais eficientes na resolução de problemas que envolviam planejamento e memória de trabalho e tomavam decisões de forma menos impulsiva.
Mas, como ocorre com os pilotos militares, existem obstáculos éticos – particularmente, a preocupação de que os profissionais médicos possam ser pressionados a usar o medicamento.



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