A convite do governo de São Paulo, o criminalista Rodolphe Archibald Reiss, apelidado de ‘Sherlock Holmes’ passou três meses ministrando aulas na capital paulista. Segundo pesquisadora da USP, salário oferecido teria sido de ‘uma soma astronômica’. Rodolphe Archibald Reiss (1875-1929), o “Sherlock Holmes” alemão que revolucionou o processo de investigação criminal em SP
Reprodução/Fundo Reiss da Escola de Ciências Criminais da Universidade de Lausanne
“Um divisor de águas para a polícia científica paulista” — é assim que alguns estudiosos definem a passagem do alemão Rodolphe Archibald Reiss (1975-1929) pela cidade de São Paulo no longínquo ano de 1913, em meio à explosão demográfica e à alta da criminalidade que o município vivia no início do século 20.
Além da formação em química, Reiss também era fotógrafo, psicólogo, criminalista e técnico policial, sendo pioneiro no uso da fotografia em cenas de crime.
Suas habilidades investigativas o renderam o apelido de “Sherlock Holmes”, uma referência ao personagem criado pelo autor britânico Arthur Conan Doyle, no século 19. Assim como na ficção, Reiss também estava sempre em posse de um cachimbo e realizava análises minuciosas dos locais investigados, se utilizando da observação, dedução e raciocínio lógico para desvendar crimes.
Foi por essas razões que, no início de 1913, o então secretário estadual da Segurança Pública, Rafael Sampaio Vidal, convidou o criminalista alemão a passar uma temporada em São Paulo.
Dessa forma, o governo paulista pretendia aprimorar o trabalho de suas forças de segurança e adquirir conhecimento para estruturar uma escola de polícia científica na capital.
Detetive à vista🕵️
Rodolphe Archibald Reiss (à esquerda) em São Paulo, no ano de 1913
Reprodução/Fundo Reiss da Escola de Ciências Criminais da Universidade de Lausanne
A visita do “Sherlock Holmes” alemão foi objeto de estudo da cientista social Regina de Sá, que escreveu sobre o assunto em “A fotografia judiciária sob investigação e o limiar da polícia científica de São Paulo, 1913-1924”, tese que desenvolveu em seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação do historiador Prof. Dr. André Mota.
Em entrevista ao g1, a pesquisadora pontuou as principais contribuições de Reiss para o aprimoramento dos processos de investigação criminal no estado:
Fotografia da cena de crime — captura e preservação do cenário encontrado, com atenção para detalhes como perfurações, gotas de sangue e impressões digitais;
Preservação da área — isolamento do local do crime para que todos os vestígios ou provas existentes possam ser coletados sem alterações;
Identificação por digitais — averiguação de registros biométricos como recurso complementar na identificação de suspeitos, sendo mais confiável do que o mero uso de retratos para essa finalidade.
Durante os três meses que passou em São Paulo, Reiss ofereceu um total de 70 aulas e palestras, todas em francês com tradução para português. Seu público era composto por delegados, advogados, médicos, promotores, juízes e professores.
No período da manhã, os ensinamentos eram teóricos; à tarde e à noite, as atividades eram práticas.
“O que me chamou mais a atenção era que ele pegava os alunos e ia pra rua. Os delegados o acionavam e ele levava o pessoal para as cenas de crime”, contou Regina.
Posteriormente, em artigos publicados no exterior, Reiss teceu elogios e críticas à atuação da polícia paulista em investigações criminais:
“Reiss ficou admirado com o fato de as diligências policiais saírem às ruas com sofisticados sistemas de primeiros socorros, apoiadas, inclusive, com transportes eficientes para atender aos chamados, algo que ele não via nem na Europa. No entanto, ao chegarem ao local, a cena do crime já estaria tomada de curiosos que nada respeitavam […] Para o criminologista, este seria um dos mais graves erros em uma investigação, pois pistas valiosas simplesmente desapareceriam do olhar dos especialistas”, escreveu Regina em sua tese.
Investimento ‘astronômico’
Rodolphe Archibald Reiss em São Paulo, em 1913
Reprodução/Fundo Reiss da Escola de Ciências Criminais da Universidade de Lausanne
Reiss e dois assistentes desembarcaram no Porto de Santos em junho de 1913. De lá, pegaram um trem rumo à capital paulista, onde se hospedaram em um “luxuoso hotel” (nas palavras dele), em frente ao Theatro Municipal — tudo custeado pelo governo estadual.
“Foi um investimento alto que São Paulo depositou nessa empreitada”, afirmou a cientista social Regina de Sá.
Segundo registros oficiais aos quais a pesquisadora teve acesso, o governo ofereceu 40 mil francos para que Reiss desse três meses de aulas e palestras na cidade, o que ela classificou como “uma soma astronômica”, considerando que o valor equivalia a mais de 40 anos do salário que o “detetive” recebia como professor extraordinário na Universidade de Lausanne, na Suíça.
De acordo com Regina, o alto investimento proposto estava possivelmente relacionado à figura que comandava o governo de São Paulo na época, Rodrigues Alves, um oligarca ligado a bancos que tinha influência e poder.
“Ele queria mostrar serviço. O cara foi para os Estados Unidos, para a Rússia, a Europa. ‘A gente tem que trazer pra cá também, por que não?'”, explicou.
Apesar da quantia investida, foi somente dez anos depois, em dezembro de 1924, que o governo do estado — agora sob comando de Carlos de Campos — tomou a primeira iniciativa para a instituição de uma escola de polícia técnica na capital, que viria a funcionar no ano seguinte, pelo curto período de dois anos.
A pesquisadora afirma que a instrumentalização de delegados, peritos e investigadores na cidade teve início, de fato, na década de 1930, com cursos que variavam de um a três anos de duração, dependendo da função.
Aventuras de “Sherlock”
Rodolphe Archibald Reiss, aos 25 anos, retratado na capa da tese de doutorado da cientista social Regina de Sá
Reprodução
Enquanto ainda estava em solo brasileiro, Reiss passou uma semana no Rio de Janeiro, a então capital do país, a convite do diretor do Gabinete de Identificação do Distrito Federal, Elysio de Carvalho.
“Na capital, dissertou sobre as técnicas da moderna polícia científica: perícias no local do crime, impressões digitais, exames de roupas, recomposição e reconhecimento de cadáveres, análise de manchas de sangue, estudos de cabelos, perícias gráficas sobre papel-moeda falso, falsificações de documentos escritos”, pontuou Regina de Sá em sua tese.
Em 1914, Reiss foi à Sérvia cobrir a invasão austro-húngara no país, em um dos primórdios do que ficou conhecido como a Primeira Guerra Mundial. A pedido de governo local, atuou como fotógrafo e denunciava crimes de guerra que estavam sendo praticados no território sérvio.
O episódio o gerou diversas críticas por parte da imprensa alemã e de colegas criminalistas dos países que formavam a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália).
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