Em chamas há mais de três meses, Parque Guajará perdeu quase metade da vegetação; Estação Ecológica Soldado da Borracha está em uma área que perdeu 163 mil hectares de floresta. A primeira foi reduzida pela Lei complementar estadual n° 1089, enquanto a segunda foi extinta pelo decreto n° 27.565; ambas foram declaradas inconstitucionais. Incêndio no Parque Guajará-Mirim, em Rondônia
Ibama
Em 2024, Rondônia bateu recordes de queimadas, sobretudo em áreas protegidas. O Parque Estadual Guajará-Mirim e a Estação Ecológica Soldado da Borracha, por exemplo, perderam milhares de hectares de vegetação. Além da destruição causada por incêndios criminosos, as unidades de conservação possuem algo em comum: ambas foram alvos de lei e/ou decreto que tinham a intenção de reduzir e/ou extinguir suas áreas.
🔎O Parque Estadual Guajará-Mirim possui cerca de 216 mil hectares de floresta protegida localizada em Nova Mamoré (RO). Desse total, mais de 100 mil hectares foram destruídos por queimadas ao longo dos últimos três meses. O parque é uma das maiores unidades de conservação do estado.
🔎A Estação Ecológica Soldado da Borracha tem uma área de 178.948 hectares e se divide pelos municípios de Porto Velho e Cujubim. A unidade foi criada para preservar a natureza e propiciar o desenvolvimento de pesquisas científicas. Os incêndios já destruíram 163 mil hectares de floresta na região onde a estação está localizada.
➡️As duas unidades são de responsabilidade do governo de Rondônia.
O processo de destruição são sempre os mesmos: desmate, incêndio e grilagem. Mas o que torna essas unidades de conservação alvos tão frequente de crimes ambientais? De acordo com o promotor de justiça e coordenador do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente, o Gaema, Pablo Hernandez Viscardi, o que tem incentivado os invasores são “eventuais apoios políticos”.
“Eles[invasores] sabem e sentem o apoio político para eventual regularização futura. Mas volto a dizer: o que eles estão fazendo ali é grilagem e grilagem nenhuma poderá ser regularizada, poderá contar com a anuência do poder público. Se os políticos nossos sinalizassem no sentido de que aquela área não será regularizada e que o que eles estão fazendo é crime, com certeza eles se sentiriam desestimulados”, reforça.
O g1 questionou ao governo de Rondônia quais medidas ele tem adotado para apontar que não apoia crimes ambientais, sobretudo em unidades de conservação, e que eles devem ser combatidos, mas nenhuma resposta foi apresentada até a última atualização desta reportagem.
Para entender a importância de preservação do Parque e da Estação, cabe ter conhecimento que dentro da unidade existem diversas espécies, seja da flora ou da fauna, que são ameaçadas de extinção, quase ameaçadas ou vulneráveis.
Além disso, ao redor da área existem outras regiões que precisam de proteção, como a Reserva Extrativista Rio Ouro Preto e Terras Indígenas como Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau e as comunidades localizadas ao redor do rio Pacaás Novos.
Em chamas
Nas primeiras semanas do incêndio, o Ibama informou que o fogo já tinha consumido 70 hectares. Em um mês, as chamas se espalharam e atualmente a área queimada é mais que 1,4 mil vezes maior do que a informada inicialmente.
Os incêndios cresceram de forma tão significativa que se tornaram o maior registro ativo em Rondônia e contribuíram para colocar o estado nos piores índices de queimadas dos últimos 14 anos.
Documentos que o g1 teve acesso mostram que as chamas foram identificadas no dia 11 de julho. A Sedam acionou o Ibama no dia 12; seis dias depois, uma equipe do Prevfogo se deslocou para atuar no local. Ou seja, quando o combate foi iniciado, o parque já queimava há pelo menos uma semana.
A equipe inicial de combate era formada por 12 pessoas, utilizando apenas meios terrestres. Desde então, os brigadistas já apontavam que a quantidade de agentes no combate era pouca.
Na sequência, equipes da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam), do Batalhão da Polícia Ambiental e da Polícia Militar também moveram pessoas e meios terrestres para atuar no combate às chamas.
A falta de apoio aéreo foi outro grande problema. Os agentes relataram a exaustão de se deslocar a pé para onde os focos estão concentrados, além da dificuldade em chegar aos pontos mais isolados.
“Um apoio aéreo seria muito importante para lançar água, para recolher os brigadistas ao final do dia. Nós já andamos praticamente uns 4 km fazendo aceiros e nós vamos ter que retornar esses 4 km de volta na pernada. O apoio aéreo deixaria onde nós precisássemos combater o fogo”, relata José Baldino, chefe de esquadrão.
A Sedam informou ao g1 que “fez tratativas” para que o Núcleo de Operações Aéreas (NOA), da Secretaria de Estado da Segurança, Defesa e Cidadania (Sesdec) fosse enviado ao local, mas que “devido ao mau tempo” e a falta de visibilidade causada pela fumaça, o pedido não pode ser atendido.
Na primeira semana de setembro, quase dois meses depois que as chamas foram identificadas, o governo de Rondônia pediu apoio aéreo para o governo federal.
Segundo o Ministério Público de Rondônia (MP-RO), há uma análise para saber se com o orçamento que a Sedam tinha, “ela poderia ter feito mais”.
“Com certeza houve um atraso. Eu não posso dizer agora que o estado foi omisso, mas com certeza houve uma demora, essas medidas poderiam ter sido adotadas desde há muito, bem antes”, aponta o promotor Pablo Hernandez Viscardi.
Incêndios criminosos
Desde que identificou os incêndios, a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) já apontava a possibilidade de ações criminosas. A hipótese foi reforçada quando garrafas de combustíveis foram encontradas próximas aos focos de incêndio, além de pegadas.
Garrafa encontrada próximo aos focos de incêndio no Parque Guajará-Mirim
Divulgação
Segundo o promotor Pablo Hernandez Viscardi, os indícios apontam que os incêndios foram causados como retaliações às fiscalizações ambientais, sobretudo àquelas realizadas na Operação Mapinguari: a maior ação de desocupação já realizada em Rondônia.
Na ocasião, pelo menos 10 pessoas foram presas, mais de 2 mil cabeças de gado foram retiradas da unidade de conservação e centenas de estruturas irregulares de invasores foram destruídas.
Barracos construídos dentro do Parque Estadual Guajará-Mirim
Silas Paixão/Ministério Público de Rondônia
“Sabemos que os incêndios são criminosos, sabemos que esses criminosos que atuam lá atuam de forma organizada, de forma articulada, já temos linhas investigativas nesse sentido. Não há incêndio acidental, não há incêndio voluntários, há dolo, há crimes”, apontou.
Para ajudar a combater os incêndios em Rondônia, o Ministério Público de Rondônia, através do Gaema, colocou em prática outra operação: Temporã. O objetivo é combater os incêndios florestais e responsabilizar criminalmente os envolvidos.
Segundo o promotor Pablo Hernandez Viscardi, a ação se fez necessária em meio a uma “falta de nexo de interlocução entre os órgãos responsáveis”.
“A gente detectou um aumento muito grande nos focos de calor e então a gente marcou uma reunião com todos esses órgãos para que a gente alinhasse uma atuação estratégica para diminuir os focos e daí surge a Operação Temporã”.
Imagens mostram destruição causadas por incêndios no Parque Guajará Mirim
Mais de 200 agentes se envolveram na operação, incluindo membros do Ibama, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Militar Ambiental, Comando de Fronteira do Exército, Secretaria de Desenvolvimento Ambiental, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros Militar e Politec.
“Isso [os incêndios] tem melhorado muito nos últimos dias, principalmente depois do dia 30, quando o Ministério Público Estadual capitaneou uma reunião com todas as forças que fecharam todas as vias de acesso ao parque e nós tivemos um excelente reflexo”, aponta o superintendente do Ibama, César Guimarães.
Segundo a Sedam, com o início da Operação Temporã, os focos de incêndio dentro do Parque Estadual Guajará-Mirim tiveram uma queda significativa. Entretanto, ao longo dessa semana foram registrados novos focos de calor dentro da unidade.
Para dificultar a ação dos brigadistas, os invasores espalham armadilhas pelo caminho, como árvores derrubadas e objetos pontiagudos para furar os pneus dos veículos.
“É um artefato caseiro chamado de ouriço que eles utilizam nas estradas para evitar a fiscalização, pequenas lanças que furam geralmente os quatro pneus das caminhonetes”, relata o tenente da Polícia Militar Ambiental, Paulo Henrique.
Ouriços utilizados para furar pneus de viaturas no Parque Guajará-Mirim
Divulgação
Segundo o promotor Pablo Hernandez Viscardi, o cenário no Parque é de guerra, inclusive com ataques diretos.
A Estação Ecológica Soldado da Borracha também foi consumida pelo fogo por mais de dois meses, segundo documentos que o g1 teve acesso. Agentes do Prevfogo encontraram áreas derrubadas e galões de veneno na unidade de conservação.
Os focos de incêndio na Estação foram identificados no dia 12 de julho. No dia 8 de setembro, quase dois meses depois, o Ibama foi acionado pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sedam). O combate foi iniciado 4 dias depois.
No dia 18 de setembro, durante o combate às chamas, os agentes do PrevFogo perceberam uma grande concentração de calor. Ao chegarem no local, encontraram a vegetação derrubada para aplicação de veneno. Galões com a substância foram encontrados próximos a uma residência.
Estação Ecológica Soldado da Borracha
Reprodução
Quase extintas e/ou reduzidas
Parque Estadual Guajará-Mirim e Estação Ecológica Soldado da Borracha: ambas tiveram suas áreas afetadas por lei e decreto estaduais que tinham a intenção de reduzi-las e/ou extingui-las.
Na segunda unidade, o decreto foi publicado no Diário Oficial (Diof) no dia 28 de outubro e é assinado pelo chefe do poder executivo, Coronel Marcos Rocha. No documento ele cita que o governo “desistiu” da criação da Estação.
O documento aponta que o motivo para não criar a Estação Ecológica se deve pela falta de orçamento para indenizar as pessoas que habitam e têm propriedades no local. Na época, a unidade tinha cerca de 700 imóveis para indenização e desapropriação.
O MP-RO entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apontando que o documento ofende o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a proibição do retrocesso ambiental. Cerca de um mês depois, o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO) suspendeu os efeitos do decreto.
O Parque Guajará-Mirim e a Reserva Extrativista Jaci Paraná se tornaram alvo de uma lei semelhante, de autoria do governador Marcos Rocha, aprovada na Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO) e sancionada em maio de 2021. Logo após a sanção, o Ministério Público do Estado (MP-RO) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
A partir da aprovação da lei, as duas áreas de preservação citadas sofreram uma redução de aproximadamente 220 mil hectares.
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“Essa lei visava exatamente regularizar os grileiros, invasores e criminosos e o Ministério Público e o Poder Judiciário não concordaram com isso. Os dados de satélite mostram que o desmatamento aumentou significativamente, justamente pela sensação de que os invasores e grileiros de que as invasões seriam regularizadas”, comenta Pablo Hernandez Viscardi.
A norma foi declara inconstitucional em novembro de 2021. De acordo com o desembargador Jorge Ribeiro da Luz, relator do processo, o governo justificou a redução apontando que existem pessoas que se ocuparam de vários espaços das unidades, até mesmo para a criação de gado. No voto, ele cita que o Estado não pode simplesmente renunciar o dever de proteger o meio ambiente diante da situação.
“Se os conflitos estão crescendo, se essas 120 mil cabeças de gado estão na reserva extrativista e no parque estadual é porque o poder público tem se mostrado ineficiente na proteção dessas unidades de conservação violando seu dever constitucional”, comentou o desembargador Jorge Ribeiro da Luz.
O g1 questionou se o governo enxerga que a lei e o decreto contribuíram para a grande quantidade de incêndios criminosos em unidades de conservação, sobretudo no Parque Guajará, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
G1 Rondônia